terça-feira, outubro 17, 2006

Muito prazer... eu sou um cachorro...




CRACHÁ NOS DENTES

Lígia Fagundes Telles

"Começo por me apresentar: eu sou um cachorro. Que não vai responder a nenhuma pergunta, até porque eu não sei as respostas. Sou um cachorro, basta.

Tantas raças vieram a desaguar em mim, como afluentes de rios, se perdendo e se encontrando, no tempo e no espaço. Mas qual dessas raças veio a desaguar na soma? Não sei. Melhor assim; permaneço na superfície, sem me indagar da raiz. Agora não.

Aqui onde me encontro, passo quase despercebido em meio aos outros que também levam seus crachás dependurados no pescoço. São como rótulos das garrafas de uísque, que ninguém lê com muita atenção. Estão todos muito ocupados pra se interessar por um próximo que é único e múltiplo, apesar da identidade.

Às vezes eu fico raivoso, meu pêlo se eriça, eu fico rangendo, ganindo. Eu quero fugir, morder... mas essas fases de cachorro louco passam logo. Então eu componho o peito, conforme ouço meu treinador dizer. Confesso que não sei o que consiste essa idéia central de “compor o peito”... mas é isso que eu faço quando desconfio que não estou agradando: eu componho o peito e volto à normalidade de um cachorro doce e manso.

O dono do circo: um hábil treinador de roupas vermelhas e botões dourados, acabou por me ensinar muitas coisas, tais como falar ao telefone, fazer piruetas, dançar. Quando eu resisto, ele vem queimar as minhas patas dianteiras com a ponta do cigarro aceso. Percebe de longe que estou vacilando na posição vertical, vem correndo e queima as patas transgressoras, até fazer aqueles furos. Então me posiciono, e saio andando com meu saiote de tulhe azul.

Mas fui humano quando me apaixonei... virei um mutante, enquanto durou minha paixão: abrasadora e breve. Tentei esconder as pequenas coisas da minha fase canina, que não eram muitas; apenas minha coleira, meu osso, e o saiote das noites de gala.

Olhei de frente pro sol! Devo confessar que varava salivando de medo aqueles imensos arcos de fogo. Penso que todo aquele fogo, agora, estava dentro de mim! Dentro do meu coração! Eu estava flamejante! ... Mas acho que flamejei demais... e meu amor que parecia feliz acabou se afastando. Era um amor frágil, assustadiço.

- “Vem comigo!” Eu queria gritar, mas só sussurrava. Passei então a falar baixinho, escolhendo as palavras; mas meu amor só se afastava, a medida que crescia meu desejo.

- “É que estou amando por toda uma vida!” Eu devia ter dito, mas me contive. Era incrível como via aquele corpo que se fechava... virou uma concha! – “Não me abandone! Não me abandone!” Cheguei a implorar no nosso último encontro. Passei então a escrever-lhe cartas tão ardentes... cheguei a repetir o mesmo texto em diversos telegramas: “Imenso e inextinguível amor!”

Era noite quando fiquei só. Fui até a janela do meu quarto e olhei a lua, com sua face de pedra esclerosada. Abracei com tanta força a mim mesmo, e perguntava: “Onde? Onde?” Fui até a larga cama branca; ali onde tantas vezes nos amamos, tanto fervor, agora aquele frio... procurei pelas cobertas, pelo travesseiro... onde?

E a busca desesperada continuou no sonho. Sonhei que escavava a terra. Acordei enlameado, aos uivos. Nem precisei ir até o espelho pra saber que virei, de novo, um cachorro...

Amanheceu. Peguei meu crachá nos dentes e voltei pro circo. O treinador me examinou um pouco e acabou por fazer um comentário engraçado... disse que eu estava ficando velho. De resto, tudo correu normalmente, como se não tivesse havido nenhuma interrupção.

Dei valor aos meus dedos, somente quando os perdi. Poderiam me servir agora para catar pulgas, ou coçar o ouvido, ou até mesmo para limpar o ranho do focinho quando estou resfriado. Com aqueles dedos eu toquei flauta! Mas nunca me masturbei... quando fui humano, nunca me masturbei, não é estranho?! Existem outras estranhezas também, mas não importa.

Aprendi a rezar; gosto muito de ouvir música e de olhar as nuvens... mas sou só um cachorro... e quando alguém duvida, eu mostro a palma das minhas patas queimadas."



1 Comments:

At 1:07 PM, Anonymous Anônimo said...

Nhaaaa
Perfeito!

:**

Saudades mocinha!!!

 

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